segunda-feira

Morre ícone da “Revolução de Veludo” que derrotou o comunismo na Europa

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No Estadão:
O ex-presidente checo, dramaturgo e símbolo da Revolução de Veludo, Vaclav Havel (foto), morreu ontem aos 75 anos, em sua casa no norte da República Checa. Acompanhado de sua mulher, Dagmar, o líder da luta anticomunista morreu enquanto dormia - ao final de uma longa batalha contra problemas respiratórios que já se manifestaram nos anos 90, quando teve de se submeter a uma cirurgia de câncer no pulmão.
Em sua homenagem, Timothy Garton Ash, amigo particular de Havel e autor do livro The Magic Lantern, um relato da Revoluções de Veludo, de 1989 - e de várias outras obras sobre o abandono do comunismo na Europa -, escreveu o seguinte texto.
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Com as mãos zunindo como duas hélices. Vaclav Havel caminha a passos curtos e rápidos pelo salão de espelhos no Teatro da Lanterna Mágica, quartel-general da Revolução de Veludo. Essa figura atarracada, ligeiramente curvada, usando jeans e suéter, para por um instante, e começa a me falar de algumas “importantes negociações”; três frases e desaparece. Ele me dá um sorriso de desculpas, como se dissesse: “O que fazer?”
Ele sempre se expressou como um crítico irônico observando o teatro da vida, mas ali, na Lanterna Mágica, em 1989, ele era o principal ator e diretor de uma peça que mudou a história.
Vaclav Havel foi um personagem que definiu a Europa do século 20. Não era apenas um dissidente, mas o epítome do dissidente, como entendemos este termo em sua origem. Não foi somente o líder de uma revolução de veludo, mas o líder da Revolução de Veludo original, aquela que forneceu um rótulo que foi usado em muitos outros protestos em massa, não violentos, a partir de 1989. (Ele sempre insistiu que um jornalista ocidental é que havia cunhado o termo).
Havel não foi simplesmente um presidente, mas foi o presidente fundador da hoje República Checa. Não foi somente um europeu, mas o europeu que, com a eloquência de um dramaturgo profissional e a autoridade de ex-prisioneiro político, nos lembrou das dimensões morais e históricas do projeto europeu. Observando a confusão em que hoje se encontra esse projeto, só posso gritar: “Havel! Devias estar vivo nesta hora: A Europa tem necessidade de ti”.
Ele foi um dos seres humanos mais cativantes que já conheci. A primeira vez que nos encontramos foi na década de 80, quando ele acabara de ser libertado depois de vários anos na prisão. Conversamos no seu apartamento à margem do rio, com sua grande mesa de escritor e uma vista, que parecia uma pintura, de Praga. Embora a polícia secreta comunista tivesse, então, chegado à conclusão que o núcleo ativo do movimento da Carta 77 - provavelmente realisticamente - era formado por apenas algumas centenas de pessoas, ele insistiu que o apoio popular silencioso estava crescendo. Um dia, as velas acesas derreteriam o gelo. É importante lembrar que ninguém sabia quando esse dia chegaria.
E levou 6 anos, mas poderia ter demorado 22 anos, como foi o caso de Aung Suu Kyi - que Havel altruisticamente indicou para o Premio Nobel da Paz, numa ocasião em que ele próprio deveria ser o ganhador.
A honra do dissidente não consiste só da vitória política. Vaclav Havel foi o epítome de um dissidente porque persistiu na luta, de modo paciente, não violento, com dignidade e inteligência, não sabendo quando - ou se - a vitória chegaria. O sucesso já se constituía nessa persistência, na prática da “antipolítica”, a política como arte do impossível.
Enquanto isso, ele analisava o sistema comunista em profundidade, e também nos ensaios pragmáticos e nas cartas escritas na prisão para sua primeira mulher, Olga. Na sua famosa parábola do vendedor de frutas schweikiano, que colocou um cartaz na vitrine da sua quitanda, entre maçãs e cebolas, que dizia: “trabalhadores de todos os países, uni-vos!” - embora naturalmente não acreditasse numa palavra que tinha escrito - Havel captou o insight fundamental que toda resistência civil suscita: que mesmo os regimes mais opressivos dependem de uma aceitação mínima por parte dos governados.
Quando teve a chance de praticar a resistência civil, Havel transformou-a num teatro político eletrizante, tendo por palco a Praça Wenceslau de Praga. Um elenco de 300.000 pessoas se expressou como se fosse uma só. Lamente muito Cecil B. de Mille. Ninguém que esteve ali esquecerá aquela cena de Havel e Alexander Dubcek, o herói de 1989 e o herói da Primavera de Praga de 1968, lado a lado na sacada: “Dubcek-Havel! Dubcek-Havel!”
Ou do som de 300.000 porta-chaves sendo chacoalhados ao mesmo tempo, como sinos chineses. Raramente um minúscula minoria se tornou tão rapidamente uma grande maioria. Talvez isso ocorra em breve em Mianmar.
Mas a Checoslováquia - como era então ainda - teve o benefício de chegar mais tarde à festa de 1989. Poloneses, alemães orientais e húngaros já tinham feito a maior parte do trabalho mais difícil, aproveitando a chance que Gorbachev lhes ofereceu. Quando cheguei em Praga e procurei Havel no seu pub predileto, brinquei com ele, dizendo que na Polônia foram necessários dez anos, na Hungria dez meses, na Alemanha dez semanas; talvez ali seriam necessários dez dias. Ele imediatamente me fez repetir o gracejo diante de uma equipe de filmagem clandestina. No caso, ele seria presidente dentro de sete semanas. Eu me lembro vividamente do momento em que começaram a aparecer crachás feitos manualmente com a inscrição “Havel para presidente”. “Posso ficar com um?”, ele perguntou educadamente para o estudante que os vendia.
“Povo, o seu governo retornou a vocês”, ele declarou no seu discurso de Ano-Novo em 1990 ao assumir o cargo de chefe de Estado, repetindo a frase do primeiro presidente da Checoslováquia, Tomas Garrigue Masaryk.
Aquelas primeiras semanas no Castelo de Praga foram frenéticas, hilariantes, edificantes e caóticas. Ele me mostrou a câmara de tortura original. “Acho que a usaremos para negociações”. Mas então a dura labuta de desfazer o comunismo começou. Todo o veneno acumulado por mais de 40 anos começou a escorrer. Agentes políticos mais irredutíveis, como Vaclav Klaus, foram os primeiros a cair. Da mesma maneira o nacionalismo. Eslovacos e eventualmente também checos. Havel lutou com toda sua eloquência para manter vivo o sonho de Masaryk de uma república multinacional, cívica - em vão.
Ele retornou como presidente fundador da República Checa atual, oriunda do chamado divórcio de veludo da Eslováquia. Ele sentia, com boas razões, que tinha de estar presente na sua criação. Acho que permaneceu tempo demais neste papel. Menos teria significado mais. Com a saúde debilitada, estava esgotado diante dos intermináveis deveres protocolares e as disputas políticas mesquinhas e, na ocasião, seus concidadãos pareciam estar cansados dele.
(…)

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