segunda-feira

O problema da jovem Dilma no tribunal é o photoshop na história, não na fotografia. Ou: quem mostra e quem cobre a cara


Por Reinaldo Azevedo



Peço que leiam com muita atenção este texto e outros que se seguem. No conjunto, eles caracterizam, entendo, a metafísica de um período da nossa história. É raro podermos relatar, em tempo real, a falsificação da história. No geral, o trabalho fica para os pósteros. Agora, podemos fazer nós mesmos esse trabalho. Vejam de novo esta foto, sobre a qual escrevi ontem. A petralhada ficou enlouquecida. Posso entender por quê. Essa gente nega até que o mensalão tenha existido, né? Tem dificuldades para conviver com a verdade. Muitos, na rede, afirmam tratar-se de uma montagem. Outros falam que o Photoshop atuou pra valer. Há quem desconfie que ela tenha sido, de fato, torturada porque estaria muito bem etc. Bem,  vejam de novo a imagem. Volto em seguida.
foto-dilma-depoimento-justica-militar1Ela foi presa em 16 de janeiro de 1970, e o interrogatório foi feito em novembro. Daria tempo para ter se recuperado. O ponto que interessa à lógica é outro. Sessões de tortura ao longo de 22 dias, conforme a versão influente, não eram prática dos trogloditas dos porões. As coisas costumavam ser mais rápidas e letais. Mas não! Eu não vou especular a respeito e, já escrevi aqui em outras ocasiões, acho que não se deve fazê-lo. Até porque havia, sim, torturadores operando nos porões do regime. NINGUÉM PRECISA NEGAR A PRÁTICA DA TORTURA PARA DIZER AS COISAS CERTAS A RESPEITO DAQUELE TEMPO.
A foto teria sido resgatada por seu hagiógrafo no arquivo oficial. Não há razão para duvidar de sua veracidade. Tampouco acredito que tenha havido qualquer manipulação técnica. ATENÇÃO, MEUS CAROS, O PHOTOSHOP QUE TEM DE SER COMBATIDO É OUTRO. O QUE SE PRETENDE COM O ESCARCÉU EM TORNO DESSA FOTOGRAFIA É OPERAR UM PHOTOSHOP NA HITÓRIA. É isso que tem de ser combatido. NÃO CAIAM NA CILADA DE DESCOFIAR DA VERACIDADE DA IMAGEM. TENHAM, ISTO SIM, É A CLAREZA PARA DESCONFIAR DO NOVO OFICIALISMO.
Conforme vocês verão no post abaixo, as esquerdas não eram compostas de anjos rebeldes, mas essencialmente bons, que estavam combatendo os dragões da maldade. Essa narrativa que a foto sugere é uma falsificação grotesca da história. No post abaixo, vocês constatarão, por exemplo, o que aconteceu com um homem chamado Orlando Lovecchio. Conhecerão, ou vão se lembrar, de Carlos Eugênio da Paz, que era da ala militar da Ação Libertadora Nacional, liderada por Carlos Marighella. Terão a chance, em suma, de ver de perto as esquerdas armadas, com a sua face real. A Dilma que aparece sentada ali num tribunal militar não remete àquela que tinha cargo de direção na VAR-Palmares, uma organização que era, sim, terrorista.
Os militares, que lêem papéis com o rosto coberto, geraram polêmica. Os mistificadores adoraram o contraste: ela, a jovem prisioneira, com o rosto à mostra; os fardados, que a julgavam, protegendo-se com as mãos. Estranho? Nem tanto!  Cometiam eles ali alguma ilegalidade para o estado de direito da época? Não! Agiam nos porões? Não! Faziam algo que contrariasse a lei, a exemplo dos torturadores? Também não! Ocorre, e sei que alguns agora terão borborigmos estertorosos, que mostrar a cara, nesse caso, implicava um risco considerável. Uma das linhas de atuação das esquerdas armadas consistia, justamente, em matar militares… fardados!
Era uma recomendação explícita, por exemplo, do Minimanual da Guerrilha Urbana, de Carlos Marighella (em vermelho):
- “Hoje, ser “violento” ou um “terrorista” é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada”;
- “é inevitável e esperado necessariamente, o conflito armado do guerrilheiro urbano contra os objetivos essenciais: a exterminação física dos chefes e assistentes das forças armadas e da polícia.”
- “Esta é a razão pela qual o guerrilheiro urbano utiliza a luta e pela qual continua concentrando sua atividade no extermínio físico dos agentes da repressão”.
Um militar era, portanto, sempre um alvo. No dia 12 de outubro de 1968, um comando da VPR assassinou, por exemplo, Charles Chandler, capitão do Exército americano que estudava Sociologia e Política no Brasil com uma bolsa de estudos. Era considerado agente da CIA. Na frente da mulher e de um de seus filhos, Jeffrey, de quatro anos (havia ainda Todd, de três, e Luanne, com três meses), Chandler levou seis tiros de revólver calibre 38 e 14 de metralhadora quando saía de casa, de manhã.  Ah, sim: ele não era agente da CIA. Nomes de seus executores: Pedro Lobo de Oliveira, Diógenes José Carvalho de Oliveira e Marco Antônio Braz de Carvalho.
E o que dizer da morte do marinheiro inglês David A. Cuthberg, no dia 5 de fevereiro de 1972, decidida pela VAR-Palmares (grupo de Dilma), ALN (grupo de Marighella) e PCBR (grupo ao qual pertenceu, depois, Tarso Genro)? Leiam trecho de um texto publicado, à época, no jornal “O Globo”:
“Tinha dezenove anos o marinheiro inglês David  A. Cuthberg que, na madrugada de sábado, tomou um táxi com um companheiro para conhecer o Rio, nos seus aspectos mais alegres. Ele aqui chegara como amigo, a bordo da flotilha que nos visita para comemorar os 150 anos de Independência do Brasil. Uma rajada de metralhadora tirou-lhe a vida, no táxi que se encontrava. Não teve tempo para perceber o que ocorria e, se percebesse, com certeza não poderia compreender. Um terrorista, de dentro de outro carro, apontara friamente a metralhadora antes de desenhar nas suas costas o fatal risco de balas, para, logo em seguida, completar a infâmia, despejando sobre o corpo, ainda palpitante, panfletos em que se mencionava a palavra liberdade. Com esse crime repulsivo, o terror quis apenas alcançar repercussão fora de nossas fronteiras para suas atividades, procurando dar-lhe significação de atentado político contra jovem inocente, em troca da publicação da notícia num jornal inglês. O terrorismo cumpre, no Brasil, com crimes como esse, o destino inevitável dos movimentos a que faltam motivação real e consentimento de qualquer parcela da opinião pública: o de não ultrapassar os limites do simples banditismo, com que se exprime o alto grau de degeneração dessas reduzidas maltas de assassinos gratuitos”.
O tenente da FAB Mateus Levino dos Santos não teve melhor sorte em Pernambuco. O PCBR precisava de um carro para usar no seqüestro do cônsul norte-americano, em Recife.  No dia 26 de junho de 1970, o grupo decidiu roubar um Fusca, estacionado em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, nas proximidades do Hospital da Aeronáutica. Ao tentarem render o motorista, descobriram tratar-se de um tenente da Aeronáutica. O terrorista Carlos Alberto disparou dois tiros contra o militar: um na cabeça e outro no pescoço. Depois de nove meses de intenso sofrimento, Santos morreu, no dia 24 de março de 1971, deixando viúva e duas filhas menores. O imprevisto levou os terroristas a desistir do seqüestro.
Era perigoso pertencer à Força Pública de São Paulo, hoje Polícia Militar. No dia 22 de junho de 1969, militantes da ALN queriam as armas de dois soldados que estavam na rádio-patrulha 416. Não tiveram dúvida: incendiaram o carro, mataram os soldados Guido Bone e Natalino Amaro Teixeira e lhes roubaram as armas.
No dia 1º de julho de 1968, Edward Ernest Tito Otto Maximilian Von Westernhagen, major do Exército alemão, foi assassinado no Rio, onde fazia o Curso da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Foi confundido com o major boliviano Gary Prado, suposto matador de Che Guevara, que cursava a mesma escola. Seus matadores: Severino Viana Callou, João Lucas Alves e um terceiro não-identificado. Sabem a que organização pertenciam? Colina (Comando de Libertação Nacional). Sabem quem era uma das dirigentes? Dilma Rousseff. Tinha tal importância na turma que foi uma das pessoas que negociaram com Carlos Lamarca a fusão do Colina com a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), dando origem à VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares). E foi justamente por divergências com o grupo de Dilma que Lamarca se descolou da nova organização para refundar a VPR.
Aquele ar de musa existencialista com cabelo à la garçonne faz photoshop na história, entenderam? Esse é o retoque verdadeiramente nefasto. Acima, relato algumas execuções, e nada disso justifica a brutalidade dos porões ou a tortura. Nem remotamente. Não adianta a canalha ficar me atribuindo o que não escrevi. Mas não me venham com conversa mole. Militares, mesmo exercendo o seu papel legal, podiam estar cobrindo o rosto para preservar a vida. A tortura é uma prática asquerosa. Mas o que dizer de grupos que matam inocentes e jogam em cima do cadáver um manifesto explicando os “motivos”, responsabilizando-o por sua própria morte? Será coisa, assim, tão moralmente superior?
Está em curso um processo, agora mais agressivo — e é impressionante que isso aconteça na democracia — de santificação de criminosos. O meu paradigma é a democracia, é o estado de direito. Não reconheço grandeza, legitimidade ou beleza em assassinos convictos. A presidente Dilma Rousseff é beneficiária da democracia. A contribuição que ela deu a esse processo se conta a partir de sua reinserção da vida política, aproveitando-se, como todos nós, dos benefícios decorrentes DA LUTA POR DEMOCRACIA, NÃO DA LUTA PELO SOCIALISMO. A luta armada era só o imaginário golpista com sinal invertido. Ou um bando que mata um homem inocente na frente da mulher e do filho de quatro anos com 20 tiros é muito diferente de uma súcia de torturadores? Com quem você dividiria a mesa do bar ou os seus afetos? Tenham paciência! Todos merecem o lixo. Ocorre que os torturadores são justamente execrados. Já aqueles assassinos são indenizados e ainda viram mártires.
Podem contar quantas mentiras quiserem a meu respeito, especialmente alguns vagabundos que foram puxa-sacos do regime militar, puxa-sacos do Sarney, puxa-sacos de FHC e que agora puxam o saco do PT. Eu tive problemas com a ditadura, tratei Sarney aos pontapés, fiz a primeira capa de revista da imprensa brasileira alertando para o apagão de energia no governo FHC (e foi apenas uma das críticas) e trato o PT como se vê. Podem contar quantas mentiras quiserem, reitero, que continuarei a contar as verdades sobre eles.
Tontos ficam babando: “Alguns leitores deste blog têm saudades da ditadura”. Talvez um ou outro tenham, não sei. O que é certo é que a maioria sente uma certa nostalgia até do que não tiveram: uma democracia de direito, em que assassinos não posem (Emir Sader escreveria “pousem”) de heróis e mártires.
Nos comentários, reitero, peço comedimento. Temos de combater é o photoshop da história. Em nome da democracia e do estado de direito, fora dos quais não há solução. Esta é uma página contra golpistas, de direita ou de esquerda. Se os esquerdistas são mais criticados, isso se deve ao fato de que, no momento, são os mais assanhados em justificar os próprios crimes. Afinal, estão no poder.

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