quinta-feira

A ilegitimidade da “bíblia psiquiátrica”


“Muitos especialistas em saúde mental perguntam: Será que alguém é normal?”. Então leia o título de um relatório da Reuters de 27 de julho. Os “especialistas” alertaram que a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ‒ DSM), com previsão de publicação em 2013, “pode significar que em breve ninguém será classificado como normal... [M]uitas pessoas antes vistas como perfeitamente saudáveis poderiam no futuro ser classificadas como doentes”.
Isso não é novidade. Mais de 200 anos atrás, Johann Wolfgang von Goethe (1749–1832) alertou: “Eu acredito que, no final, o humanitarianismo triunfará, mas temo que, ao mesmo tempo, o mundo se torne um grande hospital, cada pessoa agindo como a enfermeira da outra”.
Além disso, Goethe anteviu o vazio moral da “ciência humanitária” sobre a qual tal tirania terapêutica se apoiaria. “Eu nunca poderia ter descoberto quão miseráveis os homens são, e quão pouco eles realmente se importam em sonhar alto, se eu não os tivesse testado nas minhas pesquisas científicas. Assim, descobri que a maioria dos homens apenas se importa com a ciência se consegue viver dela, e que eles exaltam até mesmo o erro quando ele lhes garante a subsistência”.
As profundidades até onde tais homens alegremente afundariam quando a exaltação do erro lhes trouxesse fama e fortuna só se tornaram óbvias no século XX.
Joaquim Maria Machado de Assis (1839–1908), o grande romancista e dramaturgo brasileiro, promoveu a presciente satirização literária da arte obscura do diagnóstico psiquiátrico e o motor que o move: a falsa vaidade e sede insaciável do especialista de controlar os seus companheiros. O seu conto “O Alienista” (1882) é uma fábula de um célebre médico que se retira para uma cidadezinha para aprofundar a sua investigação científica da mente humana, gradualmente encontrando mais e mais habitantes insanos, necessitando serem trancados no seu hospício particular. No final, só ele é deixado em liberdade. Assim que a psiquiatria moderna se tornou uma área legítima da medicina, Machado de Assis reconheceu e expôs seu caráter quintessencialmente não científico e sádico.
Restou para o dramaturgo francês Jules Romains (1885–1972) chamar a atenção pública para a corrupção da medicina moderna pelo poder político. “Comigo, é uma questão de princípios”, declara o seu protagonista, “Dr. Knock” (1923), “considerar a população inteira como nossos pacientes... 'Saúde' é uma palavra que poderíamos muito bem apagar dos nossos vocabulários... Se você pensar, se deparará com a sua relação com o admirável conceito de nação em armas, um conceito do qual os nossos estados modernos derivam a sua força”.
Sigmund Freud (1856–1939) também desempenhou um papel importante persuadindo pessoas para as quais a saúde é um estado anormal. Essa velha piada é ilustrativa: “Se o paciente chega adiantado para a sua consulta, ele é ansioso; se chega na hora, é obsessivo-compulsivo, se chega atrasado, é hostil”.
Certos diagnósticos psiquiátricos não escaparam da crítica profissional. Desejando criar um nome para si mesmos como psiquiatras, “críticos” contestam um ou outro diagnóstico (como a homossexualidade) — ou o excesso de diagnósticos (como no caso da hiperatividade) — mas continuam a respeitar a American Psychiatric Association (APA) como uma organização científica e consideram as varias incarnações do DSM documentos legítimos respeitáveis. Isso é desonestidade. Confrontados com o DSM, o desafio que enfrentamos é o de deslegitimar os autenticadores, a APA e o DSM, não desviar a atenção da sua falsidade fundamental ridicularizando um ou outro “diagnóstico”, e tentando removê-lo da lista mágica.
Eu rejeitei consistentemente essa abordagem fragmentada. No meu ensaio “O mito da doença mental”, publicado em 1960, e no meu livro de mesmo título que surgiu um ano mais tarde, afirmei a minha ideia sem rodeios. Eu sugeri que vejamos os fenômenos convencionalmente chamados de “doenças mentais” como comportamentos que perturbam os outros (ou algumas vezes a própria pessoa), rejeitemos a imagem de “pacientes mentais” como vítimas desamparadas de eventos patobiológicos fora de seu controle e nos recusemos a participar de práticas psiquiátricas coercivas incompatíveis com as ideias fundamentais das sociedades livres. Em resumo, eu rejeitei a autoridade da APA como uma organização legitimadora e do DSM como um documento legitimador. Acredito que nada menos que isso pode desfazer o dano causado pelas sucessivas edições da “bíblia psiquiátrica”.
Estabelecido por poder político
Mas os tempos mudaram. Cinquenta anos atrás fazia sentido afirmar que enfermidades mentais não eram doenças. Não faz sentido algum hoje em dia. O debate profissional sobre o que conta como doença mental foi substituído por decreto político-judicial. A controvérsia a respeito da natureza das chamadas doenças/distúrbios mentais foi estabelecida pelos detentores do poder político. Eles decretaram que “enfermidades mentais são doenças como quaisquer outras”. O poder político e o autointeresse profissional uniram-se para transformarem falsas crenças em fatos mentirosos: “Doenças mentais podem ser precisamente diagnosticadas, tratadas com sucesso, assim como doenças físicas” (Presidente William Clinton, 1999). “Assim como podem ocorrer problemas com o coração, rins e fígado, também podem ocorrer problemas com o cérebro” (Cirurgião Geral David Satcher, 1999).
A afirmação de que “doenças mentais são transtornos diagnosticáveis do cérebro” não é baseada em pesquisa científica; é um engano e talvez um autoengano. A minha afirmação de que doenças mentais são doenças fictícias também não é baseada em pesquisa científica; ela se baseia na definição materialista-científica de doença do patologista como a alteração estrutural ou funcional de células, tecidos ou órgãos. Se aceitamos essa definição de doença, podemo concluir que doença mental é uma metáfora, e que afirmar tal ideia é declarar uma verdade analítica não sujeita a falsificação empírica.
Por séculos, o estado teocrático exerceu autoridade e usou força em nome de Deus. Os Fundadores dos Estados Unidos visaram proteger o povo americano da tirania religiosa do estado. Eles não anteviram, e não poderiam ter antevisto, que um dia a medicina se tornaria uma religião e que a aliança entre a medicina e o estado ameaçariam a liberdade e a responsabilidade pessoal exatamente como eles haviam sido ameaçados pela aliança entre a igreja e o estado.
Os Fundadores enfrentaram o desafio de separar a cura das almas pelos padres do controle do povo pelos políticos. Hoje, o estado terapêutico exerce autoridade e usa a força em nome da saúde. Enfrentamos o desafio de separar o tratamento consensual de pacientes pelos médicos do controle coercivo de pessoas pelos agentes do Estado fingindo serem curandeiros.
Quando a psiquiatria estava na sua infância, a crença que todas as “disfunções” humanas são manifestações de doenças cerebrais era um erro ingênuo. Na sua maturidade, o erro foi tratado como teoria científica válida e a justificação para uma ideologia poderosa e para as intistuições poderosas baseadas nela. Hoje, em sua essência, a psiquiatria é engano e autoengano — coerção disfarçada de ciência objetiva (“diagnóstico médico”) e ajuda benevolente (“tratamento médico”). Como resultado, parafraseando Orwell, contar a verdade se torna “um ato revolucionário”.



Via: OrdemLivre.org


Publicado originalmente em The Freeman.

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